segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Quero fazer contigo o que a primavera faz com as cerejeiras

Brincas todos os dias com a luz do universo. 
Subtil visitadora, chegas na flor e na água. 
És mais do que a pequena cabeça branca que aperto 
como um cacho entre as mãos todos os dias.


Com ninguém te pareces desde que eu te amo. 
Deixa-me estender-te entre grinaldas amarelas. 
Quem escreve o teu nome com letras de fumo entre as estrelas do sul?


Ah deixa-me lembrar como eras então, quando ainda não existias. 


Subitamente o vento uiva e bate à minha janela fechada. 
O céu é uma rede coalhada de peixes sombrios. 
Aqui vêm soprar todos os ventos, todos. 
Aqui despe-se a chuva.


Passam fugindo os pássaros.
O vento. O vento.
Eu só posso lutar contra a força dos homens.
O temporal amontoa folhas escuras
e solta todos os barcos que esta noite amarraram ao céu.


Tu estás aqui. Ah tu não foges. 
Tu responder-me-ás até ao último grito. 
Enrola-te a meu lado como se tivesses medo. 
Porém mais que uma vez correu uma sombra estranha pelos teus olhos.


Agora, agora também, pequena, trazes-me madressilva, 
e tens até os seios perfumados. 
Enquanto o vento triste galopa matando borboletas 
eu amo-te, e a minha alegria morde a tua boca de ameixa.


O que te haverá doído acostumares-te a mim, 
à minha alma selvagem e só, ao meu nome que todos escorraçam. 
Vimos arder tantas vezes a estrela d'alva beijando-nos os olhos 
e sobre as nossas cabeças destorcerem-se os crepúsculos em leques rodopiantes.
As minhas palavras choveram sobre ti acariciando-te. 
Amei desde há que tempo o teu corpo de nácar moreno. 
Creio-te mesmo dona do universo. 
Vou trazer-te das montanhas flores alegres, «copihues», 
avelãs escuras, e cestos silvestres de beijos. 


Quero fazer contigo 
o que a primavera faz com as cerejeiras.


(Pablo Neruda in "Vinte poemas e uma canção desesperada", tradução de Fernando Assis Pacheco, Poema 14)

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